“Ateu não sofre preconceito! Normalmente só é ateu quem tem boa condição de vida. Ateu não é discriminado, não passa por dificuldades na vida por ser ateu.” Decerto, você já ouviu alguma dessas afirmações. Provavelmente, emitida por uma pessoa religiosa e que não consegue enxergar que o preconceito pode ser externalizado em muitas atitudes diferentes. Alguns preconceitos são mais visíveis e dirigidos a determinadas classes de pessoas, como ocorre com a população afrodescendente ou homossexual – as pessoas torcem o nariz visivelmente e explicitamente negam oportunidades a elas, inclusive discutindo a possibilidade de negação de direitos sem apresentar qualquer justificativa válida.
Outras atitudes preconceituosas são mais veladas, contudo. Os afrodescendentes estão muito acostumados com esse tipo de preconceito: o da invisibilidade. É o que acontece quando você vive em um país em que boa parte das pessoas pobres são negras e cuja educação pública é de péssima qualidade? Acontece que boa parte dos estudantes afrodescendentes terão menos oportunidades do que os estudantes brancos e, portanto, dificilmente alcançarão o mesmo resultado que os brancos. Além disso, isso se reflete em sua autoestima: como pouquíssimos estudantes negros alcança sucesso — e os casos de sucesso ocorrem normalmente em outras atividades menos intelectuais, como o esporte, provavelmente eles sairão mal em atividades intelectuais, mesmo que intrinsecamente pudessem ter maior sucesso na Academia.
Os ateus sofrem com os dois tipos de preconceito. Se é verdade que muitos negros ainda sofrem preconceito direto de pessoas que infelizmente ainda não aprenderam que todos são iguais e devem ser intrinsecamente respeitados, o preconceito contra eles ao menos já está caindo na categoria do “politicamente incorreto”. O movimento LGBT, por sua vez, também tem conseguido importantes avanços na luta por seus direitos, apesar de os homossexuais serem ainda muito discriminados por grande parcela da população e por importantes meios de comunicação.
A discriminação contra os ateus é direta: há pelo menos duas redes de televisão – uma católica e uma evangélica – que todo santo dia (usei a expressão de propósito, não foi ato falho!!) atacam ateus, dizendo que a culpa de todas as desgraças do mundo, desde que deus criou o mundo há 6.000 anos, são nossa culpa (ironia – e eu me recuso a escrever deus com letra maiúscula).
Vamos para um exemplo. Imagine que um político importante em um certo país europeu inflame seus apoiadores a se revoltar contra os judeus, dizendo que a culpa do desemprego e da violência é deles. Dou um doce se você me disser a quem estou me referindo. Vocês diriam que não é um discurso discriminatório?
De noite, você vai a um jantar de família e as pessoas resolvem agradecer a deus pela comida (ninguém lembra de agradecer ao agricultor, ao motorista do caminhão ou ao dono da quitanda, ou mesmo a quem trabalhou para ter dinheiro e comprar o alimento). Alguém resolve rezar o pai nosso: você, para não ficar constrangido e estragar o barato dos outros, dá as mãos e fica em silêncio. Sua tia, que está ao seu lado, quebra o protocolo e abre os olhos pra ver se você está rezando direitinho. Como você é ateu, está em silêncio. Algo te diz para olhar pro lado, e você dá de cara com o olhar de reprovação da titia, que depois faz um discurso inflamado contra a juventude sem deus, te constrangendo nitidamente. Não que ser ateu seja algo constrangedor, mas ser exposto por causa de suas crenças, quando você estava respeitando as crenças de todo mundo, é extremamente embaraçoso. Você se sente o cocô da mosca que pousou no rabo do cavalo do bandido; chega até a pensar se não vale a pena repensar suas crenças para levar a vida com menos constrangimentos. Sei disso porque passei exatamente por esta situação há alguns anos. Você se sente envergonhado de ser o que você é.
Mas os ateus sofrem bastante com um outro tipo de discriminação, a invisível. Você vai a um tribunal e lá está um crucifixo – fico imaginando se o juiz iria se declarar suspeito para decidir um caso de interesse da igreja Católica, se o Judiciário afixa um crucifixo na parede de cada sala de audiência. Se os negros, com razão, se sentem diminuídos quando não se vêem representados em posição de respeito numa novela ou em um filme, nós ateus também nos sentimos assim.
Você se lembra de algum filme arrasta-quarteirão de Hollywood em que o mocinho era ateu? Não? Eu só lembro de um: Contato, baseado no livro de (e quem mais poderia ser?) Carl Sagan. Um filmaço, mas que a mídia americana nem considerou sequer cogitar para o Oscar nas categorias principais. A edição de som do filme chegou a ser indicada. Mas a atuação brilhante de Jodie Foster não foi nem elogiada pelos principais canais. Até “Homens de Preto” (aquele, com o Will Smith) foi indicado em três categorias no mesmo ano. Não é mania de perseguição, até porque outros excelentes filmes também não receberam a estatueta (até porque, como sabemos, muitas vezes o critério não é técnico), mas a meu ver isso é fruto da discriminação velada que existe contra os ateus. Carl Sagan era ateu, assim como Jodie Foster e, mesmo tendo a direção dado uma boa mitigada no ateísmo do filme (quando comparado ao livro), seria difícil ir contra o mainstream politicamente correto (porque é politicamente incorreto ser ateu, na maior parte dos meios).
Tente arrumar um emprego dizendo, na entrevista, que você é ateu. Tente se candidatar a um cargo eletivo dizendo, em sua campanha, que é ateu. Não vai nem arrumar o emprego, nem ser eleito. Duvida? Há algum tempo atrás massacraram Dilma Roussef porque ela disse que era contra o aborto e fez errado o sinal da cruz.
Como corrigir essa situação? Só vejo um caminho – expondo publicamente nossos ideais.
Um texto de Fabio Portela
Fonte: Bule Voador
Nenhum comentário:
Postar um comentário